Cada artigo e alínea que costuram a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) fazem do marco regulatório mais do que um modelo a ser seguido ao unir proteção do meio ambiente e inclusão social, prometendo gerar sustentabilidade ambiental e milhares de empregos no País. Pouco mais de um ano após a sanção pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva - em 2 de agosto de 2010 - os atores da cadeia produtiva concordam que se trata de um avanço para o País, mas divergem quanto à possibilidade de vigorar dentro dos prazos previstos.
Os verdadeiros responsáveis por colocar na prática a PNRS - de fabricantes e poder municipal até consumidores - avaliam que é necessário maior investimento de tempo e de recursos para que todo o território nacional esteja de acordo com a regulação. Isso inclui, entre outras ações, a determinação de acordos setoriais de logística reversa de cinco setores até o final do ano; a apresentação de planos de gestão, até agosto de 2012, de todos os estados e municípios; e a eliminação de todos os lixões do território nacional até 2014.
Os envolvidos têm em vista o desafio de uma realidade que, de acordo com o Ministério do Meio Ambiente, demonstra uma produção diária de 150 mil toneladas de lixo nas cidades brasileiras. Deste total, 59% vão para lixões e apenas 13% são reaproveitados. O governo federal acredita na viabilidade do cronograma. Nesse um ano, foram criados grupos de trabalho (GTs) para analisar e elaborar estudos e propostas de logística reversa e desenvolver o Plano Nacional de Resíduos Sólidos. Por meio do diagnóstico da situação no País, o plano, que define diretrizes e metas para a destinação de resíduos sólidos nos municípios brasileiros, está sendo levado a debate em audiências regionais.
O presidente da Confederação Nacional dos Municípios (CNM), Paulo Ziulkoski, não acredita que o prazo de 2014 para a eliminação total dos problemas com resíduos. Atualmente, segundo dados da CNM, apenas 40% dos municípios têm algum tipo de coleta seletiva (realizada em 10% a 20% da área urbana), 63% possuem lixões e somente 37% têm aterros. Além disso, mais de 80% das cidades não fazem compostagem. “Como legislação é um avanço. O problema é a obrigação de fazer quando não se tem condições, pelos prazos que são colocados”, avalia. Ziulkoski lembra que, antes dos aterros, o trabalho é grande para a implantação da coleta seletiva, cujo custo, conforme ele, é quase o dobro, e da compostagem, também bastante alto.
A CNM ainda estima que devem ser construídos 953 aterros sanitários, com valor total de aproximadamente R$ 54 bilhões, um aporte de R$ 20 bilhões anuais. Por isso, Ziulkoski considera os prazos uma “miragem”, pois, além dos investimentos, falta estrutura técnica nos municípios, o que não tem efetividade sem uma discussão de forma integrada aos planos diretores. O presidente da CNM acredita que os poucos meses que se seguem são insuficientes para o planejamento das cidades.
O diretor da Associação Brasileira de Resíduos Sólidos e Limpeza Pública (ABLP), Ariovaldo Caodaglio, vê com bons olhos o PNRS, que concederá linhas de financiamento a ações sociais para cooperativas de catadores, além de ser um convite para o teste de novas tecnologias e da mudança no processo produtivo das empresas. Porém, lembra que a União não pode obrigar os demais entes federativos a fazer ações que possam envolver custos, ponto que avalia não ter ficado claro na lei. “Grande parte dos municípios que possuem lixões seguramente não tem recursos orçamentários para, no tempo exigido, construir aterros e ao mesmo tempo mitigar os efeitos ao meio ambiente”, acredita. Ele observa que haverá subsídio para a implantação do aterro, mas não para a sua operação, o que deverá advir do orçamento das cidades ou de uma figura tributária a ser criada por eles.
O secretário de Recursos Hídricos e Ambiente Urbano do Ministério do Meio Ambiente, Nabil Bonduki, afirma que estão sendo discutidas ações do governo de apoio a estados e municípios para a construção de aterros sanitários e a implantação do programa de coleta seletiva, porém, a responsabilidade final é dos municípios. Conforme ele, não há estimativa quantificada de geração de emprego e renda, no entanto, é grande a expectativa, sobretudo tendo em vista a organização do trabalho dos catadores.
Efetividade da lei vai depender de iniciativa privada
O deputado federal Giovani Cherini, que preside a Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável na Câmara, reconhece que o esforço para o cumprimento do cronograma de 2014 não será fácil. Ele acredita que, se os investimentos públicos não forem suficientes, bons projetos podem garantir apoio privado. “A reciclagem pode movimentar R$ 8 bilhões por ano e gerar cerca de 600 mil empregos. Então o País tem que investir em técnicos para fazer os projetos”, analisa. Conforme ele, a falta de técnicos para colocá-los em prática se dá pela falta de recursos em ciência e tecnologia para projetos de resíduos que tenham economia de escala. “Faltam recursos e financiamento para viabilizar a inovação. Todo dia na nossa comissão chega uma nova ideia, mas ainda precisamos de muito mais investimento do governo”, conta.
Somente a implantação da logística reversa no País, de acordo com o Conselho Logística Reversa do Brasil (CLRB), representa mais de R$ 15 bilhões. O presidente do CLRB, Paulo Roberto Leite, acredita, porém, que a viabilização será feita no momento em que exista interesse econômico. “Serão atividades econômicas interessantes”, sentencia.
A cidade de Mesquita, na região metropolitana do Rio de Janeiro, driblou o orçamento precário firmando parcerias. A Secretaria do Meio Ambiente, criada em 2005, já tem estruturado o plano municipal de educação ambiental, projeto para os catadores, com cinco galpões de coleta seletiva, três cooperativas e outros três grupos de catadores sendo formados. “A prefeitura apoiou todo esse processo, mas agora as cooperativas já estão capacitadas e trabalhando de forma autônoma e treinando os novos profissionais do programa”, conta a secretária do Meio Ambiente e presidente da Associação Nacional de Orgãos Municipais de Meio Ambiente (Anamma-RJ), Kátia Perodeli.
Os projetos participaram de editais de seleção pública. “A coleta seletiva é cara, por isso é bom ter um projeto bem estruturado para ir em busca de parcerias”, afirma. Conforme a secretária, o município poderá ter o primeiro acordo setorial para a logística reversa de embalagens de óleo lubrificante. A cidade também foi a primeira a retirar o lixo do Jardim Gramacho, em Duque de Caxias (RJ), maior aterro sanitário da América Latina, passando a depositá-lo em uma área licenciada.
Além das parcerias privadas, o prefeito também apostou no projeto, participando da manutenção dos galpões, da concessão de terrenos e do processo logístico. Conforme Kátia, o município está no tom da política. A meta é ter coleta seletiva em 70% da cidade até final de 2012 e catadores organizados - atualmente são 50. “Mostramos que é possível fazer”, compara Kátia.
Logística reversa pode esbarrar em infraestrutura e tecnologia
Os acordos setoriais, que devem ser apresentados até o final desse ano, estabelecem a responsabilidade de cada integrante da cadeia de produção. O setor mais avançado, o de embalagens de óleos lubrificantes, já tem edital pronto, o que deve gerar o acordo ainda neste ano. “Não se trata de uma mera adaptação, e sim de criar um mecanismo que facilite que o consumidor encaminhe o produto de volta. Não é algo simples de fazer”, analisa o secretário de Recursos Hídricos e Ambiente Urbano do Ministério do Meio Ambiente, Nabil Bonduki.
O dirigente observa que os setores estão tomando as medidas necessárias, porém, o processo é dificultado por aqueles sem abrangência nacional ou que estão restritos a um único agente. Além disso, afirma que o custo para a adaptação das empresas pode ser um complicador. Para as lâmpadas, por exemplo, estima-se que a logística reversa chegue a 10% do valor do produto, valor que pode ser absorvido pela empresa ou pelo consumidor.Conforme ele, ainda não há previsão de incentivo por parte do governo. “Pode ser que aconteça, mas é uma discussão ainda muito embrionária, e o que diz a lei é que a responsabilidade é do produtor”, sentencia.
O secretário acredita que uma solução interessante para a cadeia produtiva pode ser a modificação no sistema de produção das empresas. “Se fica muito caro extrair o mercúrio da lâmpada para fazer a reciclagem, quem sabe seja melhor ela não ser mais fabricada, ou se mudar o processo de produção, aumentando a vida útil do produto, de modo que se reduza o custo efetivo”, sugere.
O presidente do CLRB, Paulo Roberto Leite, observa alguns hiatos nesse processo, como a falta de capacidade de infraestrutura e de tecnologia. Por outro lado, Leite conta que setores fortes, como o de transporte, não têm sido chamados nem pelo governo nem pelos produtores para viabilizar a política. “Estão trabalhando fechados em si, sem usar o conhecimento brasileiro de logística”, lamenta, afirmando haver desconfiança e medo de que as decisões acabem por ser equivocadas.
Dentre as produções mais críticas estão, conforme o sócio da Reverse (empresa que faz a manufatura reversa de resíduos eletrônicos e os encaminha para indústrias específicas) Érico Scherer, os resíduos como tubo de imagem, pilhas e baterias, assim como placas de computador, material que não possui empresas recicladoras no País - a Reverse encaminha para uma empresa em Cingapura. A exemplo da experiência da empresa gaúcha, Scherer comenta que a estrutura para atender à alta demanda desse tipo de material ainda é pequena, porém, acredita no marco regulatório para atrair empresas para atuar no setor.
Scherer vê como gargalo ainda a existência de materiais não originais. “Cerca de 40% das pilhas comercializadas no Brasil, por exemplo, são piratas, o que as torna sem destino, e acabam indo para aterros”, comenta. Além disso, a falta de responsabilidade da cadeia é alta para ser reparada, porém, acredita que a produção será cada vez mais pautada por matérias-primas passíveis de reciclagem.
O que é a PNRS (Lei 12.305/10)
Após quase 20 anos de tramitação no Congresso Nacional, a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) foi sancionada em 2010. O marco regulatório estabelece a coleta seletiva, reciclagem, tratamento de resíduos e disposição final ambientalmente adequada de rejeitos. Além disso, cria a logística reversa, que obriga os fabricantes, distribuidores e vendedores a recolher embalagens usadas de materiais agrotóxicos, pilhas, baterias, pneus, óleos lubrificantes, lâmpadas e eletroeletrônicos. O retorno dos resíduos aos seus geradores possibilita que sejam tratados ou reaproveitados em novos produtos. Os envolvidos na cadeia de comercialização dos produtos, desde a indústria até as lojas, deverão estabelecer um consenso de responsabilidade compartilhada.
Catadores e a indústria de reciclagem receberão incentivos da União. O governo pretende investir R$ 1,5 bilhão em projetos de tratamento de resíduos sólidos, na substituição de lixões e implantação da coleta seletiva e no financiamento de cooperativas de catadores. R$ 1 bilhão já está previsto no orçamento de 2011 e R$ 500 milhões virão da Caixa Econômica Federal. A política prevê, ainda, programas de educação ambiental nas cidades.
Cadeia produtiva também deve se envolver na educação dos cidadãos
Para Argolo, custo da melhor destinação dos dejetos é pequeno. FOTO:SIMERS/DIVULGAÇÃO/JC
Um dos avanços da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) será a estipulação do papel de cada ator da sociedade perante os resíduos, a chamada responsabilidade compartilhada. Algumas cidades, empresas e instituições, com histórico de cuidado socioambiental, terão mais facilidade de adaptação.
O presidente do Sindicato Médico do Rio Grande do Sul (Simers), Paulo de Argolo Mendes, primeiro sindicato do País a conquistar a ISO 14.001, certificado internacional de sustentabilidade, opina que é possível empresas e instituições assumirem a responsabilidade. O Simers, que tem parceria com a empresa Reverse para a destinação de resíduo eletrônico, também realiza descarte correto de lâmpadas e papel. “Tendo a pensar que o investimento é muito pequeno e está mais atrelado a uma questão de mudança de hábitos”, sustenta.
Além de ser ator importante no processo de logística reversa, ele observa que empresas e entidades podem entrar fortemente no quesito educação ambiental para tornar as medidas sustentáveis. “Campanhas junto aos funcionários não custam nada”, comenta. Outra ação simples, conta, foi a exclusão de todos os copos plásticos. Além disso, foi feita a substituição de todas as bombonas por filtros de água potável, a construção de cisternas (para captação da água da chuva) e a compensação dos demais gastos por meio da compra de créditos de carbono. Investimentos que, conforme Mendes, se pagam ao longo de alguns meses.
Enquanto as exigências prometem ser grandes para entidades e municípios, no entanto, o controle do cidadão é praticamente inviável. O diretor da Associação Brasileira de Resíduos Sólidos e Limpeza Pública (ABLP) Ariovaldo Caodaglio sugere que seja feita uma operação casada, em que haja benefícios, como descontos, para o consumidor. Porém lembra que a PNRS não pode ser vista fora do contexto das demais políticas públicas. “Você não pode querer o comprometimento de uma sociedade mal preparada educacionalmente”, avalia. Com investimento em educação, afirma, as empresas vão passar a se preocupar em ouvir o consumidor, mais exigente, antes de produzirem.
O exemplo de sucesso da prefeitura de Mesquita não seria possível, segundo a secretária do Meio Ambiente e presidente da Anamma-RJ, Kátia Perodeli, se, além da adaptação na legislação, os projetos não corressem paralelamente aos programas de educação ambiental. “Todo o processo vem da sensibilização nas escolas, reunião com as empresas, assim como a visita de casa em casa e mesmo reunião em igrejas e associação de moradores. Tudo isso nos permitiu criar uma rede de educação ambiental”, conta.
Metas da região Sul já estão estipuladas
O Plano Nacional de Resíduos Sólidos está sendo levado para consulta pública nas regiões do País, o que deve viabilizar os planos municipais até agosto do ano que vem. Realizada nesse mês, a consulta à região Sul definiu que os prefeitos devem implantar coleta seletiva até o final de 2014 e que 70% dos resíduos recicláveis devem ser encaminhados para reciclagem até 2015.
Conforme o secretário do Meio Ambiente de São Leopoldo e presidente da Associação Nacional de Órgãos Municipais de Meio Ambiente do Estado (Anamma-RS), Darci Zanini, as metas do Sul são mais rigorosas, por se tratar de estados com classe média mais consolidada e geração de resíduos em maior escala. Com um sistema mais bem preparado de reciclagem, o grande desafio, segundo ele, será a produção orgânica.
Em tese, os planos municipais dependem da realização do nacional, porém Zanini afirma que os municípios podem ser mais ambiciosos, estabelecendo metas e implantando ações desde logo. “Porto Alegre e Caxias do Sul, por exemplo, que já têm coleta seletiva há anos, podem ser mais ousados.” Conforme ele, o Rio Grande do Sul está com projeto de retomar o Ecoparque de resíduos sólidos para destinação dos orgânicos, como central de resíduo e compostagem para a geração de biogás. “Mas isso só tem viabilidade ambiental e econômica se feito em escala regional, por isso é tarefa do plano estadual”, projeta.
Em Porto Alegre, o plano diretor de resíduos sólidos deve somente ser adaptado ao que prevê a legislação federal. Atualmente, já existe um documento inicial. O chefe da Equipe de Resíduos Especiais do Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU), Eduardo Fleck, lembra que, desde o começo da década de 1990, a Capital trabalha com responsabilidade no setor. Atualmente, toda a produção é enviada para um aterro sanitário licenciado, em Minas do Leão. Além disso, a cidade possui a coleta seletiva duas vezes por semana e iniciou o processo de logística reversa em 2006, com atribuição de responsabilidade aos distribuidores e vendedores de resíduos perigosos. Nos últimos anos também foram criadas mais unidades de triagem - atualmente são 18 -, sendo uma delas com compostagem, na Lomba do Pinheiro.
“Temos horizontes bastante importantes ainda para percorrer, principalmente no aproveitamento dos resíduos”, afirma Fleck. Conforme ele, será necessário aprimorar a participação cidadã. Atualmente, são descartadas na Capital 100 toneladas de lixo reciclável, porém outras 250 toneladas não são separadas e acabam indo para o aterro. O setor de educação ambiental, existente há 20 anos no DMLU, deve intensificar os trabalhos.